O Brasil possui mais de 21 milhões de CNPJs ativos, dos quais 93,7% são microempresas ou empresas de pequeno porte (incluindo a figura do Microempreendedor Individual) [1], conforme boletim Mapa de Empresas, divulgado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços do governo federal, em 29/5/2023.
Diante deste cenário, imaginava-se que a Carta de Conjuntura 1, número 60, publicada no 3º trimestre pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) [2], iria considerar a efetiva influência na arrecadação de acordo com os regimes de tributação e, entre eles, o Simples Nacional, porém não o fez.
Apesar de ser esclarecedor no que se refere à carga tributária total sobre o consumo e a repartição da arrecadação por competência entre os entes federativos, o estudo não apresenta qualquer dado sobre possíveis efeitos das mudanças com a reforma tributária para as microempresas e empresas de pequeno porte.
Além disso, a Nota Técnica publicada pelo Ministério da Economia, no dia 8/8/2023 [3], seguiu a mesma linha do Ipea e apresenta apenas a possível e suposta alíquota ideal para manutenção da carga tributária efetiva total do nosso país.
A verdade é que não existem estudos pormenorizados que considerem a arrecadação por tipo de regime tributário, a fim de se ter certeza ou algo próximo disso, como afirma o governo federal, de que os optantes pelo Simples Nacional não sofrerão impactos negativos com o advento da reforma tributária.
Portanto, os agentes políticos e os próprios contribuintes precisam de um olhar mais criterioso sobre o assunto, visto que se essas mudanças não forem bem trabalhadas e equalizadas, a reforma tributária trará impacto negativo sim para os optantes do regime único de arrecadação.
Vejamos o que prevê o texto da reforma tributária, materializado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019, em relação às empresas do Simples Nacional:
“Artigo 146. (…)
§2º Na hipótese de o recolhimento dos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V, ser realizado por meio do regime único de que trata o §1º, enquanto perdurar a opção:
I – não será permitida a apropriação de créditos dos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V, pelo contribuinte optante pelo regime único; e
II – será permitida ao adquirente de bens e serviços do contribuinte optante a apropriação de créditos dos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V, em montante equivalente ao cobrado por meio do regime único.
§3º O contribuinte optante pelo regime único de que trata o §1º poderá recolher separadamente os tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V, não se aplicando o disposto no §2º deste artigo, nos termos de lei complementar.”
De acordo com a PEC, não será permitido que os optantes do Simples Nacional se apropriem de créditos do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Por outro lado, ao adquirente de bens e serviços oriundos de contribuintes optantes pelo Simples Nacional, será permitida a apropriação de créditos dos novos tributos (IBS e CBS), em montante equivalente ao cobrado por meio do regime único.
A proposta ainda dispõe sobre a possibilidade de adoção de um regime híbrido para os contribuintes do Simples Nacional, em que teriam a faculdade de recolher separadamente os tributos do IBS e da CBS. Em outras palavras, nesse regime híbrido, os contribuintes recolherão o IRPJ, a CSLL e, com as exceções devidas, a CPP mediante a sistemática do Simples Nacional e a CBS e o IBS, mediante a tributação normal para as demais pessoas jurídicas, fora da sistemática do Simples.
A partir daí, observam-se alguns pontos questionáveis e reflexivos. Entretanto, torna-se necessário separar as pessoas jurídicas do Simples Nacional que se posicionam: 1) no início da cadeia produtiva; 2) no meio da cadeia produtiva ou que, ao cabo, vendem para consumidor pessoa jurídica; e 3) as pessoas jurídicas que estão no final da cadeia e vendem para o consumidor final pessoa física.
Teoricamente, os contribuintes do Simples que vendem para o consumidor final pessoa física não terão impacto. Todavia, na prática, a teoria não se concretiza, especialmente quando se analisa o cenário com uma visão holística, ou seja, considerando a sistemática do Simples Nacional em conjunto com os outros regimes de tributação, e não apenas de forma desmembrada.
Com efeito, quando o texto da reforma tributária dispõe que o contribuinte optante pelo Simples Nacional não poderá tomar créditos — mas permitirá que pessoas jurídicas do Lucro Presumido tomem créditos IBS e da CBS — estar-se-á diante de uma redução de custo para os contribuintes do Lucro Presumido em detrimento das pessoas jurídicas do Simples Nacional, visto que no regime tributário vigente o ISS e, regra geral, o PIS e a Cofins são cumulativos para as empresas do Lucro Presumido. Isso implicará diretamente na concorrência para os contribuintes do Simples Nacional que estão no final da cadeia e vendem para pessoas físicas.
Utilizando-se do termo reformista, a “degustação” (sugestão) seria a modificação da PEC para permitir que os contribuintes do Simples Nacional — que não optarem pelo regime híbrido e que vendam para pessoas físicas — tomem créditos e abatam da parte da alíquota única do regime as porcentagens referentes ao IBS e a CBS. Inclusive, podendo até limitar a utilização do saldo credor na apuração mensal, vez que as alíquotas dos novos tributos se apresentarão maiores do que o que hoje se tem nas tabelas no Simples Nacional relativamente ao ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI. Resolveríamos, portanto, o problema da absorção de custo fiscal, preservando a concorrência no final da cadeia para aqueles contribuintes que vendem para pessoas físicas, mantendo saudável regime tão importante para o desenvolvimento do nosso Brasil.
Por outro lado, para as pessoas jurídicas que estão no início da cadeia produtiva, no meio dela ou que vendem ou prestam serviços para o consumidor final pessoa jurídica, a sugestão é que a Constituição imponha uma obrigatoriedade, inclusive, trançando um prazo para que seja regulamentada a possibilidade de escolha pelo regime híbrido, visto que como está expresso na Emenda, o legislador ordinário poderá demorar bastante para vir a regulamentar o trecho.
E quando vier a regulamentar, tem que se levar em consideração o grau competitivo, visto que alguns prestadores de serviços poderão ter que sair do Simples Nacional, por exemplo, para se meterem no novo regime relativo ao IBS e a CBS de alíquota de, em tese, 25%, sem terem créditos para compensar, como, por exemplo, será o caso dos profissionais liberais (advogados, contadores, dentre outros).
Esses profissionais, ou mesmo contribuintes do Simples que estão no início da cadeia, meio dela ou que vendem para pessoas jurídicas, terão que, por questão de sobrevivência, mudar totalmente para o novo regime proposto pela PEC 45 ou adotar o regime híbrido, visto que os tomadores de serviços ou adquirentes de mercadorias, sem a mais mínima dúvida, optarão por realizar operações com quem possa lhes oferecer maiores créditos. O olhar, portanto, dever ser muito crítico para que a Reforma Tributária não venha a prejudicar o único regime que atualmente tem baixo custo de conformidade.
É necessário também olhar para trás e levar em consideração que quando o regime do Simples foi criado o legislador pensou em simplificação, visto que várias obrigações acessórias foram dispensadas nessa sistemática, facilitando a vida de quem está começando o empreendimento e diminuindo o custo Brasil. Se o contribuinte se vê obrigado a adotar o regime híbrido, por exemplo, no mínimo, por mais que o novo regime do IBS e da CBS almeje a simplificação, o custo de conformidade para este sujeito irá simplesmente dobrar, contrariando o artigo 179 da Constituição que não está sendo alvo de modificação pela Emenda proposta.
“Artigo 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”
Cumpre registrar que a norma acima reproduzida está inserida na Constituição, no Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira, e ladeada pelo princípio esculpido no inciso IX, do artigo 170 do mesmo Capítulo I, que assim dispõe:
“Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.”
Portanto, é muito simplória a retórica de apenas possibilitar o regime híbrido sem enfrentar a disposição principiológica da Ordem Econômico Constitucional; sem levar em consideração que as microempresas e empresas de pequeno porte devem ser incentivadas pela simplificação das suas obrigações; e sem pensar que a depender da faixa de faturamento do contribuinte e da soma dos percentuais do IRPJ e da CSLL, não compensará a manutenção da pessoa jurídica em dois regimes distintos. Não se trata somente de redução da carga tributária, é mais que isso.
É bom lembrar que até antes da aprovação da PEC pela Câmara dos Deputados, o que se buscava em relação ao Simples era o alargamento das suas faixas e o aumento do limite para exclusão, visto a complexidade que sempre foram os demais regimes tributários.
Outro aspecto importante que também merece atenção especial, especificamente quando voltamos os olhos para as microempresas optantes pelo Simples que se situam no final da cadeia e que vedem para pessoas físicas, é o fato de que essas empresas, no caso de serem excluídas de ofício do Regime Unificado de Tributação, terão um incremento significativo em sua carga tributária que destoa bastante dos parâmetros de hoje quando comparamos o Simples com o Lucro Presumido.
Imaginemos, por exemplo, uma empresa de comércio optante pelo Simples Nacional que paga hoje uma alíquota de 9,5% sobre o faturamento (3ª Faixa do Anexo I, da Lcp 123/06), com dedução legal de R$ 13.860,00. Caso essa empresa seja excluída de ofício da sistemática, por exemplo, na hipótese de erros contábeis ou mesmo má interpretação da fiscalização, será obrigada a ingressar no Lucro Presumido e passará a pagar uma alíquota de IBS/CBS de 25% sobre a venda do produto, fora as alíquotas do IRPJ e da CSLL, custo este que será embutido em seu produto e repassado ao consumidor final, aniquilando seu poder competitivo frente às concorrentes optantes pelo Simples, com sério risco de perda de clientela e, em último caso, encerramento da atividade comercial por inviabilidade econômica.
Nesse sentido, ficam as perguntas: 1. Será que a mudança é constitucionalmente legítima? 2. Se sim, as microempresas, as pequenas empresas e a economia brasileira estão preparadas para uma mudança tão drástica sem levar em consideração o grau competitivo e o custo Brasil?
Referências:
[1] https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-1o-quadrimestre-2023.pdf – acesso em 17 de setembro de 2023, 21:10h.
[2] https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2023/07/230706_cc_60_nota_01_reforma_tributaria.pdf – acesso em 17 de setembro de 2023, 22:45h.
[3] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/estudos/8-8-23-nt-mf_-sert-aliquota-padrao-da-tributacao-do-consumo-de-bens-e-servicos-no-ambito-da-reforma-tributaria-1.pdf – acesso em 17 de setembro de 2023, 22:32h.
Autores:
Felipe Crisanto
Sócio do Mendonça & Crisanto Advogados, mestre em Direito Econômico, especialista em contabilidade e Direito Tributário, professor da BSSP e Ibet e consultor jurídico da sociedade de economia mista de fomento ao turismo na Paraíba — PBTUR S/A.
Paulo de Tarso
Advogado tributarista. Mestrando em Direito Tributário pelo Ibet (SP). Professor do LLM em Direito Tributário Empresarial da BSSP Centro Educacional. Membro da Comissão Nacional de Direito Tributário da OAB.
1 comentário em “Reforma Tributária: impactos no Simples Nacional e ausência de estudos”
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