Périsson Lopes de Andrade
Advogado em São Paulo e Mestre em Direito Tributário Internacional, pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT
pandrade@perissonadvocacia.com.br
Recentemente, o Brasil celebrou novos Tratados Internacionais, para evitar a dupla tributação da renda, e também Emendas a alguns já existentes, para adequá-los a diversas orientações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual o Brasil pretende ingressar, para fazer parte desse seleto grupo de países, formado principalmente por nações desenvolvidas, e atraindo, assim, mais investimentos internacionais para o país.
Com efeito, foram recentemente incorporados ao ordenamento jurídico nacional, por decreto presidencial, os Tratados celebrados entre Brasil e a Suiça (Decreto nº 10.714/2021), os Emirados Árabes (Decreto nº 10.705/2021) e Singapura (Decreto nº 11.109/2022). Algum tempo antes, já havia sido Emendado e internalizado o Tratado existente entre o Brasil e a Argentina (Protocolo de Emenda – Decreto nº 9.482/2018). E pendem, ainda, de aprovação definitiva pelo Congresso Nacional, com a posterior incorporação do Direito interno, o Tratado com o Uruguai (Projeto de Decreto Legislativo nº 161/2022) e a Emenda ao já existente Tratado com a Suécia (PDL nº 217/21).
Em todos esses acordos, novos e emendados, dentre as adaptações ao Modelo OCDE de Tratados, destacamos, neste pequeno artigo, a cláusula PPT (Principal Purpose Test), ou seja, do Teste do Propósito Principal. A cláusula PPT representa uma Norma Antielisiva Geral ou GAAR (General Anti-Avoidance Rule) Internacional, incorporada em tratados para evitar a dupla tributação celebrados segundo as recomendações da OCDE, e derivada da Ação nº 6 do chamado Projeto de combate ao BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), em tradução nossa Erosão de Bases e Remessa de Lucros.
A mencionada regra autoriza a desconsideração, pelo Fisco Federal, de planejamentos tributários internacionais, quando as autoridades fiscais de um dos países contratantes entenderem que tais planejamentos tiveram como um dos seus principais objetivos a economia de tributos.
Em livro de minha autoria, fruto de minha dissertação de Mestrado em Direito Tributário Internacional, defendida perante e aprovada pela banca no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT)[1], analiso a referida norma internacional, a sua origem e a sua correta interpretação, de acordo com os comentários da própria OCDE, e segundo uma perspectiva de Direito Comparado, considerando, inclusive, a sua origem e inspiração na Norma Antielisiva do Reino Unido – e os contornos da mesma naquele país, segundo um duplo teste de razoabilidade e de substância – para, ao final, fazer a análise de compatibilidade ou não desse instrumento internacional de fiscalização com o ordenamento jurídico brasileiro e quais os seus limites de aplicação no Brasil, segundo nosso ordenamento constitucional e legal complementar.
Nossa pesquisa pretendeu demonstrar, assim, que a melhor interpretação da norma PPT, segundo o entendimento externado pela própria OCDE, é aquela que só autoriza a sua utilização quando os atos e negócios questionados pelo fisco não apresentarem substância ou justificativa econômica, ou seja, se mostrarem inteiramente artificiais, e não a proibição de planejamentos tributários lícitos, realizados dentro de um contexto empresarial, de efetiva estruturação ou reestruturação de negócios internacionais, com a legítima busca da menor carga tributária legalmente possível. Nas palavras de Ricardo Mariz de Oliveira, a questão a ser investigada pelo Fisco deve se circunscrever não à suposta “inexistência de ‘business purpose’, mas de inexistência de ‘business’”[1].
Ocorre, entretanto, que essa norma antielisiva internacional, em razão de seu texto com termos vagos, sem determinação precisa, pode vir a ser interpretada de forma a conferir um grau elevado de discricionariedade às autoridades fiscais, gerando insegurança jurídica na sua aplicação, atingindo, assim, planejamentos empresariais e tributários internacionais legítimos. E a aplicação da cláusula PPT, dessa forma, sem segurança jurídica, poderia vir a prejudicar o próprio objetivo dos tratados internacionais, de incrementar a circulação de riquezas entre as nações, sem a dupla tributação da renda.
Por isso a importância desse examine mais detido e, na sua execução, de nos atentarmos também aos direitos fundamentais dos contribuintes e aos limites constitucionais e legais, no Brasil, de atuação do fisco, para assim chegarmos aos verdadeiros contornos, em nosso país, desse instrumento de combate a planejamentos tributários internacionais abusivos, na linha, aliás, de recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2446, cujo julgamento foi concluído em 11/04/2022.
De fato, no julgamento de tal ADI, a despeito do STF ter declarado ser constitucional o parágrafo único, do artigo 116 do Código Tributário Nacional (incluído pela Lei Complementar nº 104/2001) – norma complementar essa que igualmente possibilita às autoridades fiscais desconsiderarem negócios e estruturas jurídicas utilizados pelo contribuinte, em situações de igual artificialidade –, o STF limitou a sua abrangência, em consonância com o princípio constitucional da legalidade e com esteio, ainda, na proibição complementar, no artigo 108 do mesmo CTN, ao uso da analogia e da interpretação econômica do fato gerador do tributo – para somente autorizar a invalidação, pelo Fisco, de situações de típica simulação ou dissimulação e fraude do contribuinte, sem respaldo na realidade.
Com efeito, assim foi o voto condutor do julgamento, proferido pela Relatora Ministra Cármen Lúcia, no qual foi conferida interpretação “conforme a Constituição” do dispositivo do CTN em foco, ao se aduzir que “a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”.
A Ministra relatora, acompanhada nesse raciocínio por praticamente todos os Ministros de nossa Suprema Corte (somente os Ministros Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes ressalvaram a sua divergência, mas para irem além, e declarar a inconstitucionalidade do dispositivo complementar, por entenderem “a providência não caberia a qualquer autoridade administrativa, já que apenas ao Judiciário competiria declarar a nulidade de ato ou negócio jurídico alegadamente simulados”[1]), acrescenta, ainda, que não está “autorizado o agente fiscal a valer-se de analogia para definir fato gerador e, tornando-se legislador, aplicar tributo sem previsão legal”, nem a socorrer-se “de interpretação econômica”. Ao final, conclui a Relatora e o STF que “a despeito dos alegados motivos que resultaram na inclusão do parágrafo único ao art. 116 do CTN, a denominação ‘norma antielisão’ é de ser tida como inapropriada, cuidando o dispositivo de questão de norma de combate à evasão fiscal”.
Assim, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, embora tenha julgado improcedente a ADI nº 2446, para declarar constitucional o mencionado parágrafo único do artigo 116 do CTN, verdadeiramente limitou e restringiu o conteúdo de tal dispositivo e a sua aplicação, para reduzir a pretendida norma antielisiva brasileira a uma efetiva norma antievasiva, direcionada ao combate da fraude, da simulação e da artificialidade.
Concluímos, assim, em nosso livro, que é exatamente esse o critério que deve ser utilizado pelas Cortes Administrativas e Judiciais do Brasil, na aplicação da referida cláusula PPT, contida nos novos e nos renovados Tratados para evitar a dupla tributação celebrados pelo Brasil, sob pena de sua inconstitucionalidade parcial e de sua não recepção por nosso ordenamento, como já fez o STF, em relação a outros Tratados Internacionais já analisados por tal Corte[2][3][4], que igualmente se mostravam incompatíveis com nosso sistema constitucional.