‘Profetizo’ que teremos um sistema tributário futuro tão peculiar quanto o atual
Confira o texto escrito pelo Rafael Moumdjian, coordenador do MBA Gestão e Tributação no Agronegócio:
Finalmente, depois de 35 anos que se ecoava para todos os cantos do Brasil que “a reforma tributária vai sair”, não é que saiu? A PEC 45 foi aprovada pela Câmara dos Deputados, mas de um jeito atabalhoado, com leitura dinâmica de mais de 100 páginas em horas. Um prenúncio da boa esperança, totalmente blindada de qualquer dúvida sobre sua eficiência.
Comparado ao Sistema Tributário Brasileiro atual, qualquer mudança é considerada bem-vinda, pois a criação de um modelo de Imposto sobre Valor agregado (IVA) que já existe em mais de 175 países ao redor do mundo demonstra aderência às práticas internacionais.
É positivo que, finalmente, uma reforma viabilize a adoção de uma sistemática tributária que, teoricamente, almeja implementar um sistema tributário com eficiência e transparência ao ponto de permitir ao contribuinte saber o que está sendo considerado no preço do serviço ou produto adquirido. Não existirá mais aquele “emaranhado” de siglas como PIS, Cofins, ICMS, ISS, entre outras.
Em tese, a partir de novas diretrizes constitucionais, o Brasil poderá se “despedir” do atual complexo cenário tributário existente, reduzindo de forma expressiva a quantidade de normas, eliminando alíquotas, unificando outras, com redução em massa de litígio tributário, permitindo um sistema amplo de recuperação de créditos sem depender da “dupla dinâmica”, a essencialidade & a relevância.
Mas será que não existe mérito a ser discutido? Apesar do autor não buscar debater matéria de direito no presente artigo, vale ressaltar que o texto da PEC 45 desconsiderou os artigos 155 e 156 da Constituição Federal de 1988.
Parece ser inevitável questionar qual foi o critério para simplesmente transferir para a União uma competência dos municípios e estados, pois nos parece que o Pacto Federativo já nasce prejudicado quando se fala em autonomia financeira dos entes da República Federativa do Brasil.
O autor traz o ponto de preocupação, pois paira um sentimento entre os tributaristas de que ao menos uma parte do texto da emenda é um “natimorto”, já que na própria Constituição Federal de 1988 o federalismo comporta competências tributárias e financeiras para cada ente federativo conforme o tipo de imposto ou contribuição, assim como a participação dos entes nas transferências de recursos entre si.
Ou seja, os entes deixarão de legislar em matéria tributária para ICMS, IPVA, IPTU, ISS e afins para legislar em formato de assembleia condominial, sempre dependendo de voto de maioria, acordos de compensação, entre outros temas. Quando se fala em mais de 5.500 municípios, fica nítida a insegurança jurídica e a perda de autonomia é instaurada de imediato.
Faço valer o destaque do ponto acima pois o sistema tributário proposto não traz uma aparente descentralização necessária para o dual funcional. Ou seja, se o IBS é de competência relativa aos estados e municípios, seria criado por meio de Lei Complementar que estaria em consonância com a CBS para fins de fato gerador, base de cálculo, alíquotas etc. A competência dos estados e municípios dentro das normas gerais do artigo 146 da Constituição Federal estaria prejudicada.
Além disso, nos parece que o Princípio da Seletividade Tributária, prevista no artigo 153, §3° inciso I da mesma Constituição Federal, ficou “corrompido”, pois podemos incorrer em situações em que campeonatos esportivos, produções culturais e cinematográficos tenham tributação inferior a insumos essenciais como telecomunicações, energia, transporte terrestre e aéreo, entre outros.
Deixamos claro que não temos nada contra os eventos culturais, esportivos ou cinematográficos, mas nos paira ainda o bom senso de que em um país de dimensões continentais e de tamanha desigualdade social, ainda temos outros insumos e bens mais essenciais.
O artigo 20 da Emenda Aglutinativa trouxe uma preocupação ainda maior quando se fala em impacto inflacionário versus redução do custo Brasil com a aplicação da reforma tributária, pois a PEC 45 trouxe a possibilidade de se instituir uma nova contribuição estadual sobre produtos primários e demais commodities. Ou seja, além de criar esta nova espécie tributária que vai contra o processo de simplificação, ainda traz impactos à neutralidade prometida.
Outro ponto que merece muito destaque é que o mesmo artigo 20, de uma forma indireta, abre a possibilidade de tributação sobre as exportações, mesmo que na Constituição Federal de 1988 esteja prevista a imunidade nestes casos. Comento este ponto porque, com a possibilidade de criar fundos estaduais na comercialização de produtos como condição de fruição de beneficio fiscal do ICMS atualmente e do IBS no futuro, nos parece que a exportação está sendo indiretamente tributada.
A regra de incentivo justifica-se precisamente neste ponto, ou seja, a capacidade de induzir condutas concretas que o contribuinte beneficiado não adotaria se não houvesse uma vantagem tributária aplicada.
Apenas a título de exemplo, se considerarmos produtos primários que atualmente têm uma carga tributária efetiva de 2,8% ou 4,8% – a depender da origem e destino entre os estados –, caso aprovada a alíquota referencial do IVA dual de 25% aplicando-se a redução de base de cálculo de 60%, ainda teríamos uma carga tributária efetiva de 10% sobre o mesmo produto primário, ou seja, aumento de carga tributária e consequente impacto inflacionário.
Agora, com esta aparente mudança de planos, a expectativa é que tenhamos uma alíquota referência de 28% com a junção do IBS + CBS, ou seja, o maior IVA do mundo, superando o dos países escandinavos – provocação inicial deste artigo.
Mas acalme-se, a história não termina por aqui. Devemos levar em consideração outro aspecto de suma importância que será debatido e regulamentado através de Lei Complementar, pois no texto da PEC existem mais de 50 referências a esta necessidade. A criação e definição das regras gerais do IBS e da CBS será feita dessa forma, bem como a disposição dos regimes diferenciados, procedimentos de compensação de tributos, definição de restituição ou qualquer outra forma de monetização de contribuintes que sejam credores de PIS, Cofins, IPI, ICMS e a forma de funcionamento do Conselho Federativo.
Perceba que a proposta da PEC 45 é encerrar (ou ao menos reduzir) a insegurança jurídica no Brasil, mas da forma em que foi aprovada pela Câmara dos Deputados está gerando ainda mais insegurança jurídica, pois além do histórico existente, ainda se pressupõe a exceção da exceção nas bases do IVA dual.
Além disso, a expressão dual já deixa expresso que será um tributo de arrecadação para o governo federal e outro para estados e municípios, mas a destinação é diversa da repartição das receitas. Se em sua essência já é bipartido, por qual razão ainda dependeremos de leis ordinárias e outras normas infraconstitucionais? “Profetizo” que teremos um sistema tributário futuro tão peculiar quanto o atual.
Outra preocupação que merece destaque refere-se a qual tratamento será aplicado aos contribuintes com créditos acumulados de PIS e Cofins e apenas tratar do ICMS com o “absurdo” de compensação em 20 anos. Isto não seria para “espantar” investimentos e empresas ao invés de convidá-las a investir no Brasil?
O texto, sob a nossa ótica, ainda deixa um risco aberto a novas formas de crédito acumulado, principalmente para as empresas exportadoras, uma vez que sequer existe um prazo para monetização, restituição ou ressarcimento deste ativo.
Por fim, podemos considerar inconstitucional concentrar o poder de instituir o IVA dual na União, pois contraria o disposto no artigo 60, §4º da Constituição Federal. Combinada com a suposta autonomia dos entes federativos implicará em “guerra fiscal” novamente com a geração de deslocamento de contribuintes e consumidores.
Citei “por fim”, mas como diziam os amigos da época de consultoria tributária, “para o pior não há limites”. Temos ainda o “imposto do pecado” ou Imposto Seletivo, que será graduado de acordo com o grau de nocividade à saúde humana e ao meio ambiente. Com isso, nos parece que será mantida a “arena” de “lobby” como um instrumento de arrecadação e barganha.
É publico e notório que ainda teremos muitos debates jurídicos, políticos e econômicos sobre a questão. Espera-se que o Senado “apare todas as arestas” na PEC 45 e nas emendas aglutinativas, pois como os ingleses falam, “the taxman is not a shake-down artist. But neither is he your friend”.
RAFAEL GARABED MOUMDJIAN
Graduado em Direito pela Universidade Municipal de Mogi das Cruzes e em Contabilidade pela Universidade Paulista, pós-graduado em Direito Público pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de São Paulo. Possui certificação academia SAP em “Material Management” pela SAP Scotland. Atua como professor em diversas instituições de ensino em Direito Tributário e Direito Público. Head of Indirect Tax & LTOs do Syngenta Group